DIZEM POR AÍ QUE MORREU HERBERTO HÉLDER
O Principe
24.03.15
DIZEM POR AÍ QUE MORREU HERBERTO HÉLDER
Dizem por aí que morreu Herberto Hélder, o poeta.
Mais que um poeta, um homem de pensamento livre. Decidiu com liberdade e coragem sempre a sua vida e o que fazer com a sua obra. A sua poesia era dele, emprestada á voz e à imaginação dos outros. Nunca se subjugou a editores, agentes literários e a críticos. Foi o que foi, nunca deixou que fizessem de si e da sua obra o que não quis. Traçou o seu caminho no acaso da independência, deixou-se ir pela corrente do seu próprio rio fazendo sempre o que melhor conseguiu em cada represa que lhe foi colada, muitas vezes traiçoeiramente. De todo o trajecto sobejou caracter, a sua liberdade, a sua resistência ao status quo instalado em todos naipes intelectuais deste país arregimentado.
No rio que foi a sua vida, deslizou, colheu imagens que transformou em palavras tão unicamente escritas e ditas, construiu e destruiu castelos, embalou e estremeceu-nos, brincou com as palavras com dureza como as arredondou, deu-lhes cor, movimento e música como ninguém o fez.
Abro a televisão e os noticiários insistem: morreu Herberto Hélder! Como se fosse possível um poeta morrer, é tão simplesmente uma parte do seu trajecto, a chegada á sua foz onde as suas águas tão diferentes dos demais se juntarão sem se confundirem com as de Pessoa, de Jorge Sena, de Sophia de Mello Breyner. E se ao olharem para o mar virem um pedaço verde que se transmuta o tempo todo e resiste à ondulação e á espuma que vêm beijar as areias dos mais comuns e da vulgaridade, aí está o Herberto Hélder.
Fico com a sensação que Pessoa, ordenará a Álvaro de Campos que vá na sua moderna barcaça receber Herberto com os braços abertos cintando-se a si mesmo:
E proclamo (meu caro Herberto-imagino eu a forma)
(…)
Primeiro:
O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo!
E proclamo também: Segundo:
O Super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo!
E proclamo também: Terceiro:
O Super-homem será, não o mais livre, mas o mais harmónico!
Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando(-te, digo e imagino eu uma vez mais) abstractamente o Infinito.
Herberto Hélder é um poeta que viverá ao longo dos tempos pelas suas palavras, pela sua diferença harmoniosa, e o mais importante serão sempre os seus poemas e a única forma de o elogiar, enaltecer, fazer valer a pena cada dia da sua existência entre nós, é lê-lo e dar a ler aos outros, partilhar! Daí que o mais importante neste texto é a poesia de Herberto Hélder e por isso transcrevo o poema que tantas vezes reli:
A Bicicleta pela Lua Dentro - Mãe, Mãe
A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha -
mãe, mãe - as tellhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro - mãe - com as suas praças
descascadas.
A neve sobre os frutos - filho, filho.
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto - meu filho - os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome -
minha mãe, minha máquina -
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.
Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
limpo como um alfabeto. E as praças
dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe — como janeiro resplende
nos satélites. Filho — é a tua memória.
E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
As estátuas, de polvos na cabeça,
florescem com mercúrio.
Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro,
é a neve avançando na sua bicicleta.
O alfabeto, a lua.
Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
la dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre — mãe — era o teu nome.
As letras cresciam em torno da terra,
as telhas vergavam ao peso
do que me lembro. Começo a lembrar-me:
era o atum negro do teu nome,
nos meus braços como neve de janeiro.
Novembro — meu filho — quando se atira a flecha,
e as praças se descascam,
e os satélites avançam,
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.
O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra - mãe. Resplendentes,
estátuas negras no teu nome,
no meu colo.
Era a neve que nunca mais acabava.
Começo a lembrar-me: a bicicleta
vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
ao contrário, sonhando
dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua
batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
do meu nome negro, e nunca mais
acabava de nevar.
Era novembro.
Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio
crescendo com toda a força em volta
da terra. Mãe - se morreste, porque fazes
tanta força com os pés contra o teu nome,
no meu colo?
Eu ia lembrar-me: os satélites todos
resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
sonhando com tanto peso no meu colo.
Ó mãe, atum negro —
ao contrário, ao contrário, com tanta força.
Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.
O teu nome negro com tanta força —
minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta — minha mãe —
com tanta força, e nunca
— mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora.
HERBERTO HÉLDER
Eu continuarei por aqui como tantos outros a ler, a dizer, a declamar, a encontrar caminhos largos em cada teu poema. Obrigado (porque tu foste o maior de todos sem saltos altos, sem bicos de pés, sem muletas) porque nos deixaste o teu melhor…
José Carlos Madeira