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MORDIDELA

JOSÉ CARLOS MADEIRA

MORDIDELA

JOSÉ CARLOS MADEIRA

DIZEM POR AÍ QUE MORREU HERBERTO HÉLDER


O Principe

24.03.15

Bico d'Obra3.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                 DIZEM POR AÍ QUE MORREU HERBERTO HÉLDER

 

 

Dizem por aí que morreu Herberto Hélder, o poeta.

Mais que um poeta, um homem de pensamento livre. Decidiu com liberdade e coragem sempre a sua vida e o que fazer com a sua obra. A sua poesia era dele, emprestada á voz e à imaginação dos outros. Nunca se subjugou a editores, agentes literários e a críticos. Foi o que foi, nunca deixou que fizessem de si e da sua obra o que não quis. Traçou o seu caminho no acaso da independência, deixou-se ir pela corrente do seu próprio rio fazendo sempre o que melhor conseguiu em cada represa que lhe foi colada, muitas vezes traiçoeiramente. De todo o trajecto sobejou caracter, a sua liberdade, a sua resistência ao status quo instalado em todos naipes intelectuais deste país arregimentado.

No rio que foi a sua vida, deslizou, colheu imagens que transformou em palavras tão unicamente escritas e ditas, construiu e destruiu castelos, embalou e estremeceu-nos, brincou com as palavras com dureza como as arredondou, deu-lhes cor, movimento e música como ninguém o fez.

Abro a televisão e os noticiários insistem: morreu Herberto Hélder! Como se fosse possível um poeta morrer, é tão simplesmente uma parte do seu trajecto, a chegada á sua foz onde as suas águas tão diferentes dos demais se juntarão sem se confundirem com as de Pessoa, de Jorge Sena, de Sophia de Mello Breyner. E se ao olharem para o mar virem um pedaço verde que se transmuta o tempo todo e resiste à ondulação e á espuma que vêm beijar as areias dos mais comuns e da vulgaridade, aí está o Herberto Hélder.

Fico com a sensação que Pessoa, ordenará a Álvaro de Campos que vá na sua moderna barcaça receber Herberto com os braços abertos cintando-se a si mesmo:

E proclamo (meu caro Herberto-imagino eu a forma)

(…)

Primeiro:

O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo!

E proclamo também: Segundo:

O Super-homem será, não o mais duro, mas o mais complexo!

E proclamo também: Terceiro:

O Super-homem será, não o mais livre, mas o mais harmónico!

Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando(-te, digo e imagino eu uma vez mais) abstractamente o Infinito.

 

Herberto Hélder é um poeta que viverá ao longo dos tempos pelas suas palavras, pela sua diferença harmoniosa, e o mais importante serão sempre os seus poemas e a única forma de o elogiar, enaltecer, fazer valer a pena cada dia da sua existência entre nós, é lê-lo e dar a ler aos outros, partilhar! Daí que o mais importante neste texto é a poesia de Herberto Hélder e por isso transcrevo o poema que tantas vezes reli:

 

A Bicicleta pela Lua Dentro - Mãe, Mãe

A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe - 
ouvi dizer toda a neve. 
As árvores crescem nos satélites. 
Que hei-de fazer senão sonhar 
ao contrário quando novembro empunha - 
mãe, mãe - as tellhas dos seus frutos? 
As nuvens, aviões, mercúrio. 
Novembro - mãe - com as suas praças 
descascadas. 

A neve sobre os frutos - filho, filho. 
Janeiro com outono sonha então. 
Canta nesse espanto - meu filho - os satélites 
sonham pela lua dentro na sua bicicleta. 
Ouvi dizer novembro. 
As praças estão resplendentes. 
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto. 
Aviões passam no teu nome - 
minha mãe, minha máquina - 
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve. 

Avança, memória, com a tua bicicleta. 
Sonhando, as árvores crescem ao contrário. 
Apresento-te novembro: avião 
limpo como um alfabeto. E as praças 
dão a sua neve descascada. 
Mãe, mãe — como janeiro resplende 
nos satélites. Filho — é a tua memória. 

E as letras estão em ti, abertas 
pela neve dentro. Como árvores, aviões 
sonham ao contrário. 
As estátuas, de polvos na cabeça, 
florescem com mercúrio. 
Mãe — é o teu enxofre do mês de novembro, 
é a neve avançando na sua bicicleta. 

O alfabeto, a lua. 

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem. 
Era pesada, ao colo, cheia de neve. 
la dizendo o teu nome de janeiro. 
Enxofre — mãe — era o teu nome. 
As letras cresciam em torno da terra, 
as telhas vergavam ao peso 
do que me lembro. Começo a lembrar-me: 
era o atum negro do teu nome, 
nos meus braços como neve de janeiro. 

Novembro — meu filho — quando se atira a flecha, 
e as praças se descascam, 
e os satélites avançam, 
e na lua floresce o enxofre. Pegaste na paisagem 
(eu vi): era pesada. 

O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas. 
Laranjas de pedra - mãe. Resplendentes, 
estátuas negras no teu nome, 
no meu colo. 

Era a neve que nunca mais acabava. 

Começo a lembrar-me: a bicicleta 
vergava ao peso desse grande atum negro. 
A praça descascava-se. 
E eis o teu nome resplendente com as letras 
ao contrário, sonhando 
dentro de mim sem nunca mais acabar. 
Eu vi. Os aviões abriam-se quando a lua 
batia pelo ar fora. 
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios 
do meu nome negro, e nunca mais 
acabava de nevar. 

Era novembro. 


Janeiro: começo a lembrar-me. O mercúrio 
crescendo com toda a força em volta 
da terra. Mãe - se morreste, porque fazes 
tanta força com os pés contra o teu nome, 
no meu colo? 
Eu ia lembrar-me: os satélites todos 
resplendentes na praça. Era a neve. 
Era o tempo descascado 
sonhando com tanto peso no meu colo. 

Ó mãe, atum negro — 
ao contrário, ao contrário, com tanta força. 

Era tudo uma máquina com as letras 
lá dentro. E eu vinha cantando 
com a minha paisagem negra pela neve. 
E isso não acabava nunca mais pelo tempo 
fora. Começo a lembrar-me. 
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos 
de peixe, tua coluna 
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha 
cantando na neve que nunca mais 
acabava. 

O teu nome negro com tanta força — 
minha mãe. 
Os satélites e as praças. E novembro 
avançando em janeiro com seus frutos 
destelhados ao colo. As 
estátuas, e eu sonhando, sonhando. 
Ao contrário tão morta — minha mãe — 
com tanta força, e nunca 

— mãe — nunca mais acabava pelo tempo fora. 

 

HERBERTO HÉLDER

 

Eu continuarei por aqui como tantos outros a ler, a dizer, a declamar, a encontrar caminhos largos em cada teu poema. Obrigado (porque tu foste o maior de todos sem saltos altos, sem bicos de pés, sem muletas) porque nos deixaste o teu melhor…

 

José Carlos Madeira

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